O Estado de S.Paulo - 08 de fevereiro de 2011
Picasso nos dá vontade de viver
Arnaldo Jabor
As férias custam a acabar. Você volta para a realidade brasileira e Paris não sai, como uma mancha no corpo. Eu só vou a museus no exterior. Estive no Museu d"Orsay, Louvre, Orangerie, no Grand Palais; vi Monet, Basquiat. Sempre acabo no museu Picasso. Chego lá e vejo que está fechado, para obras. Mas, mesmo assim, saio pela rua e tudo me parece irreal, cubista, os rostos, os gestos, os ângulos das esquinas.
"Picasso me dá vontade de viver!" - penso. É isso mesmo. Ele não nos faz sonhar com coisas que não estejam presentes, palpáveis, vivas. Em sua arte, há um permanente viés até de caricatura. Por isso eu vi seus quadros nas caras e calçadas do Marais. Ele não tinha uma "mensagem" para passar ao mundo ou besteiras assim. Ele pintava a própria mudança, seu devir, seu envelhecer, suas comidas e amores, até os maravilhosos e eróticos quadros de tortas mulheres, palhaços e mosqueteiros loucos nos últimos meses de seus 92 anos de vitalidade. Picasso pintava a forma das coisas desconhecidas. Peguem um acrobata seu, um beijo na praia, um Minotauro estuprando uma virgem, peguem suas amantes viradas ao avesso, peguem tudo e ali só existirá seu cotidiano muito parecido com o nosso.
Picasso mudou o olho humano. Cézanne já tinha pintado a matéria íntima da natureza. (Ele disse: "Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim"). Van Gogh já tinha pintado o tempo. Isso. Cézanne recortou o espaço e Van Gogh captou o tempo. Olhem um Van Gogh e vejam o tempo passando sobre as coisas. Nada para em Van Gogh: a igreja se move, os lilases ventam, a matéria fervilha em cada pincelada, as cadeiras, as camas, as coisas passam em progresso, parece que vemos os átomos girando, os girassóis rodando, vemos a morte passando no rosto do doutor Gachet ou da Arlesiana.
Depois, Picasso chega e pinta os dois: o espaço-tempo. Sua viúva disse que ele não podia ficar com a mão parada; não parava um segundo de ver o mundo dentro e fora dele. Mexia em tudo: de um peixe comido ele tirava a espinha e fazia uma cerâmica, um selim de bicicleta ele transformava em cara de boi, o regador em um homem, um automóvel em macaco, um beijo na praia em uma fome voraz entre corpos, virava uma mulher em flor e flor em mulher. Sua mão não podia parar - tinha de ficar desenhando para não enlouquecer.
Fez cerca de 36 mil quadros, além de esculturas, tudo. Picasso é um pintor popular. Por isso é que as filas se formam para ver seus quadros. As pessoas vão ali para se ver. Picasso era um rude espanhol, um torcedor de futebol, um comedor de mulheres, um glutão, um sacana aficionado por touradas e que não queria humilhar ninguém. Picasso era um espantoso retratista da realidade, só que a "realidade" para ele não era essa série de arestas e volumes verossímeis a que estamos acostumados, pousados no horizonte da perspectiva burguesa. Sua realidade não tinha perspectiva. Se bem que ele também nunca acreditou nos anseios de uma abstração metafísica, que almeja uma platônica "essência" de algo finalmente flagrado, "para longe, mais além da aparência suja do mundo. Picasso sempre amou justamente esta face "suja" do mundo, sempre viveu em busca da figura, sim, da figura que, para ele, era muitíssimo mais constelada, muito mais complexa e mutante que as chatas realidades que o burguês chama de "naturais" ou "corretas". Picasso sabia que nada existe além da vida, nada "over the rainbow", nada além do nosso olho que, esse sim, pode ser ampliado como um telescópio ou caleidoscópio, se não estiver domesticado por ideologias ou delírios bobos. Picasso nunca precisou dos excessos do dada ou do surrealismo para sair "fora da aparência". Sabia que isso era impossível e ridículo, de certo modo. Nunca precisou de uma realidade "supra", em relação à figura naturalista. Picasso não deformava nada, como costumam dizer; ele via outras formas, seu olho negro profundo que nos fita sem parar parece dizer: "Eu vejo todos os lados das caras, dos corpos, eu vejo as figuras dentro das outras, eu vejo o espaço entre as pessoas, as linhas invisíveis que as ligam, os vazios dentro delas, eu não vejo a beleza como algo ''sublime'' a se chegar. Não há nada a se atingir; por isso a minha frase ''Eu não procuro; eu acho'' é tão mal interpretada. Ela não quer dizer que eu tenho talento ou algo assim. Não. Essa frase quer dizer que eu não sei, antes, para onde estou indo; eu só chego ao quadro ao final".
Picasso é um grafiteiro. Por isso, lembrei dele quando vi Basquiat no Museu de Arte Moderna e lembrei que os primeiros milhões que Basquiat ganhou, torrou num Picasso, para "não jogar dinheiro fora" em drogas e loucuras. Picasso não busca "auras". Seus quadros são até mal acabados, nas coxas, como é o cotidiano. Picasso é sadio. Nunca teve a romântica palidez do sofrimento em busca do "sentido". Adorava viver e pintava a própria vida, felicíssimo, de bermuda, rindo, comendo, trepando e fumando; nunca acreditou que o "artista só é grande se sofrer" - o artista só é grande se viver.
Os grandes artistas buscam a realidade, pois, como disse Woody Allen, "ninguém sabe o que é a realidade, mas ainda é o único lugar onde se come um bom bife". Uma historinha do nosso grande Iberê Camargo ilustra bem o que digo sobre Picasso. Iberê passou a vida pintando objetos e obsessões reais que ele viveu e sempre foi chamado de "abstrato". Uma vez, numa exposição sua, ele veio indignado reclamar para o Mario Carneiro (outro pintor e discípulo): "Mario... veja este quadro (diante deles, uma tela aparentemente abstrata). Pois, eu pintei aqui essas ''pirocas encaramboladas com chapéus'' e veio aquela mulher ali e me disse que era uma abstração sobre o pôr do sol no Rio. Não é um absurdo?"
Nós não vemos Picasso; ele é que nos vê. Por isso, faz tanto sucesso. Ele nos explica. Picasso sabia que a morte acontece, mas não existe. Só existe a vida.